FLOR

NÃO SE PREOCUPE EM ME LIMITAR, JÁ ME DISSERAM O QUE POSSO FAZER


    O casarão era lindo. Os chicotes de couro eram limpados pela preta todos os dias, brilhavam, refletiam como um espelho. Depois ela os estendia em um armário, juntando-o com as outras ferramentas portáteis de controle de ânimos tão lustrosas quanto. Pobre dela se não fizesse o trabalho direito, teria que limpar o próprio sangue até deixar brilhando novamente, refletindo como um espelho. Quando o fazia direito, até ouvia um "muito bem".

    Essa época passou. Não há mais pretas limpando a própria dor após um duro castigo. Os pretos cresceram, conquistaram o próprio espaço e chegam a lugares que nunca pisaram antes. Comemoram cada vez que "fazem algo que nenhum preto fez antes na história". Têm que comemorar mesmo, mas por quê? Pelo quê? É claro que a dolorida herança histórica nos força a estar sempre lutando, contudo, nos acostumamos a ficarmos felizes com o que é cotidiano para outros. Nivelaram por baixo as conquistas de um negro a ponto de fazermos festa quando comemos a mesma comida de quem tem menos melanina na pele, no mesmo lugar onde comem.

    Tornou-se realidade apenas aquilo que é permitido, porque temos que conquistar o que não precisaria ser conquistado antes de realmente fazer a diferença para os outros. E quando brilhamos em outro nível, quando alcançamos algo que não foi separado para nós, fica em segundo plano porque "primeiro negro a" é mais importante que se esse negro fosse o único humano a ter feito algo, ou o melhor. O fato de ser afrodescendente vem antes da conquista em si. Não surgiram diretores ou atores negros ótimos apenas nos últimos anos, mas há alarde quando um destes é indicado a um Oscar. Não é normal.

    "O que esse preto está fazendo aqui? Não deveria estar lutando para sobreviver a uma dessas coisas do povo dele"?

    Ninguém diz isso, mas é como se dissesse. É impressionante quando alguém de origem africana alcança o mesmo auge dos outros que nasceram apenas para alcançar este ponto. Não precisou desviar de tantos obstáculos, mesmo que fosse mais pobre que preto. Inclusive, não é o capitalismo que atrapalha, são os tons de marrom que levamos na pele. "Ele é preto, mas isso não o atrapalhou em ser o melhor no que faz".

    Temos permissão de sermos os melhores no mundo apenas naquilo que criamos sem que citem a etinia. O melhor capoeirista, o melhor acarajé, o melhor tocador de tambor. Fora disto, temos de ser nomeados como "o primeiro negro a", "o melhor negro em", "o representante afro em". E temos de comemorar! Temos que dizer ao mundo que conquistamos aquilo e que nossos antepassados são africanos.

    Comemoremos mesmo, pois, mesmo nivelando por baixo, ainda temos que lutar para alcançar um teto tão baixo, enquanto outros apenas levantam as mãos e alcançam facilmente o teto de um castelo com oito metros de pé direito. A luta é sempre grande. Mas, não julguem aqueles que não comemoram. Alguns cansaram de agradar o mundo fazendo truques como um cachorrinho. Ou de limparem o chicote que pode machucar as próprias costas, recebendo palmas se fizerem o trabalho bem feito.

    A luta continua, mas não podemos entregar armas nas mãos de quem não nasceu para ser um soldado. Muito menos julgá-los como fracos, isso é o que capataz com o chicote fazia. Deixa o preto colorir o mundo do jeito que quiser, já há tanta gente limitando tudo, não precisamos de mais ninguém fazendo isto.

     Deixa ele ser normal ou anormal. Que seja um preto com o punho fechado e levantado, ou que seja aquele que não quer ser o que todos os pretos devem ser, aos olhos do repressor ou do reprimido que também acha que pode doutrinar.

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