FLOR

O PROBLEMA NÃO É A BOLHA, É A BOCA DE QUEM SOPRA

               Lembro muito bem de 1999. Eu tinha 11 anos e conheci, dois anos antes, um menino que estava se transformando em meu melhor amigo de infância e já consolidado para a vida toda. Eu adorava ir à casa dele, lá me esbanjava com diversas brincadeiras, muitas risadas, a doce mãe dele e um belo aparelho eletrônico: um Super Nintendo Entertainment System, o famoso SNES.

               
                 Aliás, foi nesse Super Nintendo que conheci o jogo que me mostrou que uma princesa pode sim ser salva pelo príncipe, ao mesmo tempo que pode empunhar uma espada e ser essencial na trajetória dos heróis que salvaram o mundo em The Legend of Zelda. Mas, não é disso que quero falar. O videogame me ensinou algumas coisas, infelizmente, o feminismo não está incluso neste pacote. Ainda é um dos mercados mais machistas que existem.
               Nessa época, eu fazia parte de um grupinho de amigos que adoravam uma confusão. Uma espécie de pequenos arruaceiros que achavam que invadir um areal para brincar era o ápice da rebeldia. E a máfia do bairro botava medo mesmo. Para se ter uma ideia, o filho de uma traficante via de tudo que acontecia na sua casa, mas morria de medo de nós. O problema de uma irmandade “criminosa” como essa é que as regras são muito claras e quem as desrespeitasse, no meu caso, era expulso sumariamente para, posteriormente, ser esculachado em todos os âmbitos possíveis.

                Foi nesse 1999 que eu disse, interrompendo uma brincadeira da máfia:
                - Eu já vou indo.
                - Onde vai? – Perguntou um deles.
                - Vou na casa de um amigo.
                Fiz meu rumo a um beco onde tinham quatro ou cinco casas. Meus parceiros já sabiam quem morava lá, um menino branco, cabeludinho e bem delicado.
                - Tá louco? Esse guri é veado!
                - Ué! Ele tem um Super Nintendo. – Eu mal entendia o que era isso de “veado”. Só sabia que era um menino de 11 anos também. Como toda criança noventista, éramos muito inocentes. Claro que eu sabia que era algo como “ele gosta de meninos”, mas eu não consegui assimilar aquilo. Acabou que nunca mais fui convidado para brincar com eles mesmo. O que foi ótimo!

                Ressalto, não digo que eu era a criança revolucionária que lutava pelos direitos dos homossexuais. O que quero dizer é que nem eu, talvez nem o amigo do SNES, certamente nem os amigos que o chamavam de “veado” sabíamos, de fato, o que isso significava. A diferença é que eles aprenderam a odiar. Suas famílias e a bolha a sua volta moldaram um ambiente propício a esse tipo de preconceito. O menino que duvidou da minha sanidade por ter vontade de jogar videogame com um gay não fazia ideia da força de sua frase, aquilo era muito normal no seu âmbito. Anormal era quem tinha uma vida amorosa diferente do construído como certo.
                Foi por causa daquele Super Nintendo que conheci minha franquia preferida, me diverti com jogos como Goof Troop, Top Gear, Sim City, Super Mario World e Donkey Kong Country. E foi por conta da mesma máquina que comecei a entender como funciona a sociedade brasileira no que tange à construção do preconceito. Comecei a realizar lá em 1999, porém, somente fui entender mesmo após os vinte.
           Os sentimentos humanos são construídos aos poucos, pecinha por pecinha. São quebra-cabeças de peças customizáveis e intercambiáveis. Eu posso moldar o meu amor através de conceitos como vivência, nostalgia, recompensas e gratidão, entretanto, também o posso desenvolvê-lo baseado em outras peças pré-produzidas que o meu meio criou para que todos os puzzles tenham formatos muito semelhantes. Nesse segundo caso, onde o amor é produzido em série, ele é baseado em preconceito.
                Meu pai é pastor e minha mãe muito evangélica. Isso não quer dizer que fui criado em uma família dogmática, apoiada nos preceitos criados pelo homem para tentar compreender a Deus. Muito pelo contrário, poucos julgamentos eram feitos na minha família. Isso foi ruim em alguns momentos em que eu precisava de rédeas, como na adolescência, mas, no caso do menino e seu SNES, foi essencial para que eu fosse uma criança desprendidas de ideias prévias e vivesse a amizade maravilhosa cheia de aprendizados que tenho até hoje, e que é perpétua.
              Eu sou um homem heterossexual sem medo de dizer que amo outros homens por ter sido uma criança livre para entender o mundo do meu jeito. É na infância e na adolescência que a pessoa vira o cidadão e é nessa época que todos que a cercam precisam se esforçar para ensinar as coisas certas.

              Em 1999, ele era meu amigo do SNES, depois virei o seu amigo do Nintendo 64. Crescemos como PC Gamers fissurados num Unreal Tournament e hoje somos irmãos com DNA’s distintos. Eu devo dizer que o amo por ter me ajudado, sem saber, a ser o homem que sou hoje em dia.

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